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De sal e água-régia

Foto do escritor: Cristiane CasquetCristiane Casquet

De sal e água-régia tem uma cadência visceral, típica dos escritos da autora. Um presente da Maria Fernanda Elias Maglio (Nana) pro Prosa Poética e pra nós. Arte Elaine Rizzo


DE SAL E ÁGUA-RÉGIA

“Um lugar deve existir. Uma espécie de bazar. Onde os sonhos extraviados. Vão parar” (Chico Buarque)









A roupa da normalidade não me cabe mais Talvez não tenha servido nunca Por anos encolhi a barriga Vencendo o zíper que resistia As mangas da blusa me estrangulando os braços

Na roupa justa da sanidade não cabem desejos O que ela suporta é trabalho e casamento Cabem filhos (no máximo três) se forem limpos Disciplinados E ordeiros

A roupa da normalidade não suporta desordem Tem goma passada à ferro Costura de avesso imaculado Gola de organza ou veludo ou renda Não admite algodão

A roupa da normalidade me deu RG Quatro amigos Um passe de metrô Dois cadernos pautados Um sabor de sorvete preferido

A roupa da normalidade me tirou muito mais Eu não cabia inteira no estreiro do tecido Então ela me cortou um braço Uma fatia da bochecha Dois dedos de cada pé E arrancou meu umbigo Só de maldade

Repartiu meu coração Em dois pedaços desiguais Tirou o maior deles (bem o que abrigava os sonhos grandes) Jogou na lixeira em frente à farmácia

Me sobrou um naco de coração Povoado de sonhos minúsculos: uma casa limpa uma batedeira nova um cacto de flor amarela

Com o coração que restou O RG, os amigos E nenhum sorvete (a roupa da normalidade me colocou de dieta) Escrevi no caderno os sonhos grandes

Ao ver que escrevia Extirpou meu resto de coração E atirou contra o muro de pedras Espatifando os sonhos miúdos

O que a roupa da normalidade não sabia O que eu própria desconhecia Era que os sonhos (os grandes, os pequenos, até os minúsculos) São feitos de sal e água-régia

A água-régia derreteu o tecido trançado a ouro E também a lixeira em frente à farmácia A farmácia Os cadernos pautados E os sorvetes de todos os sabores

Até mesmo eu O braço que restava O rosto escavado A barriga sem umbigo

Eu nem precisava de mim Nem de olho, nem de roupa, nem braço Feita de sonho, sal e água régia Galopando a bruma do desatino

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