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As velhas bruxas

Foto do escritor: Cristiane CasquetCristiane Casquet

Um conto delicioso de Eliana Gagliardi


As velhas bruxas


Carolina era uma menina muito esperta e curiosa que gostava de histórias de bruxas. Na hora de dormir, ela pedia à mãe ou ao pai que lhe contasse alguma, como aquela da Vasilisa, na qual havia a Baba Yaga, uma bruxa de queixo e nariz encurvados: o primeiro para cima e o segundo para baixo. O rosto dela, cheio de verrugas, era emoldurado por cabelos desgrenhados e seus dedos se completavam com unhas grandes e grossas, todas estriadas.


Baba Yaga morava em uma casa que andava, pois se apoiava sobre dois enormes pés de galinhas. As dobradiças da porta eram feitas de dedos de defuntos e a maçaneta, uma boca cheia de dentes pontudos, mordia quem tentasse girá-la. Além de viver numa casa que andava, ela se locomovia por meio de uma espécie de pilão voador, varrendo o caminho por onde passava com uma vassoura feita de cabelos de gente que já tinha morrido!!!


Carolina sentia um medaço ao ouvir tal história. E quando o conto chegava ao fim, ela queria ir para a cama dos pais, dormir aconchegada no meio deles. Não conseguia sequer se imaginar sozinha, pois pensava: “E se a Baba Yaga me pega e me leva para essa casa!!! Credo!” Mas, no dia seguinte... Isso mesmo, a menina pedia novamente para que a mãe ou o pai lhe contasse outra história de bruxa.


Bem, isso era de noite. Quase todas as noites. De dia, pela manhã, Carolina ia para a escola, como toda criança.


No caminho, passava sempre por uma fábrica abandonada. Um prédio de tijolos à vista, muito alto e velho, de janelas basculantes com vidros quebrados e armações enferrujadas, cercado por um pátio e com duas imensas chaminés - torres em um estado deplorável, com jeito de que iam despencar a qualquer instante.


Era um prédio antigo, do tempo de juventude de sua avó, que também gostava de contar histórias à neta - só que eram histórias de verdade. Contava coisas do tempo antigo da cidade e da rua em que Carolina morava. Inclusive sobre a fábrica. A avó dizia que antigamente, no galpão, se fabricava sabão e ali trabalhavam mais de cem funcionários. Contava que o dono era um italiano que tinha se feito na vida com muito esforço, com muito trabalho et cetera e tal.


A vó falava também que a fábrica, nos dias de hoje, funcionava quando a madrugada chegava e todos os moradores da pequena rua dormiam. Que era frequentada por alguns seres mágicos e... Bem, vamos admitir que suas histórias não eram todas exatamente de verdade, mas Carolina ficava morrendo de curiosidade. Queria muito entrar na fábrica, mas se estava proibida de nela entrar durante o dia, quem dirá à noite! Era um lugar perigoso para crianças.


Em uma certa madrugada de vento e chuva, os trovões acordaram a menina. Ela sentiu um cheiro muito forte, fedido, e percebeu uma claridade entrando através da persiana de seu quarto. Como você sabe, Carolina era curiosa. Pulou da cama, abriu a janela para ver o que estava acontecendo: a fábrica parecia estar em pleno funcionamento naquela hora da noite, justamente como dizia sua avó. De uma chaminé saía fumaça verde e da outra, vermelha. Era daquela fumaça que o fedor exalava.


“Não, não posso ficar sem saber o que está acontecendo”, pensou a menina.


Com muito cuidado, Carolina pegou uma lanterna, pulou a janela do quarto para o jardim e dirigiu-se para o prédio. Ninguém nas ruas. Silêncio absoluto. Ela foi andando. A certa altura, bem perto do galpão, pensou em voltar.


Medo? Sim, até demais.


Medo que deixava suas pernas meio bambas e fazia seu corpo tremer levemente. Mas tinha de aguentar e matar a sua curiosidade. Seguiu em frente e parou no portão de ferro da entrada da fábrica para espionar o ambiente. O pátio também estava vazio. Ninguém. Só mato crescido. Caminho aberto, lanterna acesa, iluminando o calçamento carcomido, seguiu até a entrada do galpão. Empurrou a porta que rangeu. A menina respirou fundo, entrou.


Viu máquinas e caldeiras enferrujadas, bancadas vazias, correntes grossas e tubos, meio soltos e meio presos, que desciam da extremidade mais alta do teto. Devo dizer que Carolina tinha medo das alturas e das funduras tanto quanto de bruxas. As torres a amedrontavam e o imenso pé direito do prédio, também. As paredes subiam lá para o alto, e ela se sentia achatada, ameaçada, pequena demais diante daquela imponência. De um lado, havia escadas que levavam para um mezanino e do outro, uma sala. Tudo estava muito sujo e empoeirado.


Medo? Sim, cada vez maior. Carolina sentia um friozão na barriga.


Então ela percebeu, ao fundo, três mulheres que conversavam e cozinhavam um caldo numa velha caldeira da fábrica. O cheiro era insuportável e havia muita fumaça - verde e vermelha. Carolina se perguntava por que aquelas senhoras estavam lá, o que estavam fazendo àquela hora da noite naquele lugar. Não podia ficar sem saber. Escondendo-se atrás de uma máquina e outra, por baixo das bancadas, a menina foi se aproximando o suficiente para acompanhar a cena e escutar o que as mulheres conversavam.


Você já adivinhou quem eram essas senhoras? Sim, eram três velhas bruxas postadas bem embaixo de um facho de claridade. A primeira delas resmungava que o prazo para se transformarem se encerrava naquela noite e não tinham nem conseguido completar a poção mágica. Ainda faltava o ingrediente mais importante: o coração de uma menina. A segunda senhora vociferava que não poderiam desistir de procurar o que faltava, pois precisavam mudar de identidade e se adaptar ao novo mundo - tinham de se transformar em bruxas modernas.


Carolina, de tão nervosa com o que estava ouvindo, deixou cair a lanterna dentro de um latão e o barulho ecoou pelo galpão. As três mulheres calaram-se, entreolharam-se e pararam de mexer o caldo do imenso tacho. A menina ficou imóvel. Prendeu a respiração. O barulho cessou e as senhoras voltaram a conversar e a mexer a poção que estavam preparando.


Então, a terceira bruxa tomou a palavra e completou, com uma voz de indignação:


- Hoje em dia, todas as bruxas viraram boazinhas e até simpáticas. Estão todas atualizadas, nada mais de vassoura ou outro objeto mágico para se locomover, viajam mesmo é de avião. Não querem nada com a feiura, fazem até plástica. Só nós três e mais algumas sobramos, ainda somos das antigas! Cansei de ser excluída. Vamos logo acabar com isso. Vamos procurar o que falta, o tal coração de menina. Colocamos no caldo, bebemos a poção e pronto! Boazinhas e bonitinhas para sempre, igual às bruxas da modernidade.


Escutando isso, Carolina levou as mãos ao peito como se quisesse protegê-lo - o que, no caso, era bom mesmo - e resolveu fugir. Mas danou-se. Tropeçou em um maldito balde, derrubando-o e chamando a atenção das criaturas. As mulheres caminharam em direção ao ruído e perceberam que havia alguém ali – uma garota!


Carolina conseguiu correr, mas as bruxas, ainda que senhoras idosas, tinham as canelas azeitadas e já estavam em sua cola, prontas para atacá-la e tomar seu coração. Era tudo o que elas precisavam para completar sua receita!


Foi uma perseguição e tanto!


Carolina subiu correndo pela escada que levava ao mezanino, e as bruxas, atrás dela. Quando as senhoras chegaram lá em cima, a menina desceu escorregando pelo corrimão. Uma das bruxas - elas também eram espertas - não teve dúvidas e lançou um feitiço:


- Ão, ão, ão, dê meia volta corrimão!


E Carolina rodopiou no ar e foi lançada bem longe. Em seguida levantou-se, correu e entrou na primeira sala que viu. Trancou a porta para que as velhinhas não entrassem. Mas uma das bruxas lançou outro feitiço:


- Êta, êta, êta, abra-se maçaneta!


Pronto! Com a porta aberta entraram as três que, imediatamente e ao mesmo tempo, gritaram:


- Orda, orda, orda, segure a menina dona corda!


Assim, lá estava Carolina fortemente amarrada. Ela tentou se desvencilhar, mas era impossível. O serviço da corda havia sido muito bem feito, exemplar. A menina estava presa, imobilizada. Seria, dali a pouco, substância de poção de bruxa.


As senhoras, então, arrastaram sua presa para perto do caldeirão onde fervia o líquido milagroso que as transmutaria em bruxas modernas assim que recebesse o coração da menina. Puseram-se a mexer o caldo e a tagarelar novamente, enquanto aguardavam o momento de colocar o último ingrediente.


Medo? Muito.


Carolina suava, tremia e em vão fechou os olhos - as bruxas continuavam lá. Sem a cama dos pais para se abrigar, precisava encontrar uma saída. Resolveu, então, participar da prosa e fazer as bruxas desistirem de seu intento. Chamando mentalmente a ajuda de todos os santos que conhecia e fazendo um enorme esforço para controlar a gagueira de pavor, disse:


- Se...senhoras, pen...pensem um pouco antes de completar a poção! Sem bruxa feia e malvada, nós... crianças, não sentiremos mais tanto medo à noite, na... na hora de dormir!


- Ah, sim, bonitinha - falou uma das bruxas. - E a gente fica excluída, sozinha em nossa terra de bruxas más, sem circular pelo mundo de hoje, tão moderno? Nunca!


- Além disso - completou a segunda bruxa -, atualmente não existe mais criança que tenha medo de bruxa má!


- Quem disse isso? - retrucou Carolina. - Eu, por exemplo, gosto de sentir medo quando minha mãe ou meu pai conta histórias de feitiços. Eu e muitas outras meninas e meninos! É verdade também que demoramos em dormir. Mas, em certa hora o sono chega e capotamos. No dia seguinte, nem lembramos mais de nada e, à noite, pedimos outra história. Já pensou se vocês, bruxas em extinção, acabam de vez? Por favor, pensem nisso.


A terceira bruxa replicou:


- Ah, tá bom! Pense nisso você. Depois, quem aguenta os pais, somos nós! Muitos deles vivem reclamando que os filhos correm para suas camas, que história de bruxa dá trauma, que histórias boas são somente as que falam de bruxas graciosas...


- Donas bruxas – disse a argumentadora menina -, o que as senhoras não sabem, e os pais desconfiam, é que nós, crianças, gostamos de dormir juntinho deles, mesmo sem medo. Com medo, é melhor ainda! E que, com o tempo, vamos aprendendo a lidar com ele sozinhas, a enfrentá-lo sem pai nem mãe.


- Não, nanim, nanão!!! - continuou a terceira bruxa. - Pode tirar o cavalinho da chuva que não vamos mudar de ideia, ainda mais agora que encontramos o ingrediente que faltava. Ô, menina faladeira! Fique quieta – arrematou.


- Ah, é assim que se acaba uma conversa? – continuou espertamente Carolina. - Começo a pensar que vocês estão mesmo é perdendo seus poderes. Querem ser boazinhas porque não estão mais dando conta do recado. Não sabem mais produzir feitiços de verdade, não sabem mais ser malvadas. É´ isso que está acontecendo, e vocês não querem dar o braço a torcer!


Medo? Muito. Seu coração parecia querer saltar pela boca de tanto que pulava no peito (o que, no caso, iria facilitar a tarefa das criaturas).


As velhas damas deram de ombros e continuaram a ferveção do caldo e a papear amenidades. No entanto, o que Carolina havia dito tocou no brio das senhoras, ficou pairando em seus pensamentos e foi crescendo até que entrou na conversa. Será que a garota tinha razão? Estariam elas acovardadas? Estariam invejando as bruxas modernas porque seus próprios poderes haviam diminuído, porque não tinham mais coragem de ser o que sempre foram – feias e malignas?


Então, após confabularem, as bruxas tomaram uma decisão. As três juntas proclamaram:


- Agem, agem, agem, continuaremos a nossa linhagem.


Assim dizendo, entornaram o líquido do caldeirão no chão, não sem antes desamarrar Carolina e deixar que a menina voltasse para casa. Afinal, precisavam do medo dela e o de muitas outras crianças!!! Elas, então, pegaram suas vassouras e saíram voando de volta à terra das bruxas de antigamente – feias e malvadas.

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