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Foto do escritorCristiane Casquet

Só fala quando eu mandar



A crise pega, os boletos não respeitam meu saldo bancário, decido complementar renda e me cadastro como motorista por aplicativo. Uber, Cabify, 99POP e outros, só chamar que eu vou. Daí toca e vou lá buscar o passageiro, final de tarde, trânsito moderado. Encosto no endereço de origem, prédio comercial, a mulher sai falando ao telefone, abre a porta sem confirmar a placa do carro. Entra sem confirmar meu nome. Joga bolsa, pastas e uma sacola no banco atrás de mim. Bate a porta com mais força que o necessário. Continua ao celular, olho pelo retrovisor e espero a chance de confirmar nome e destino. Ela percebe que estou parado, faz uma pausa, confirmo nome e destino mostrados pelo aplicativo, a rua é um passarinho conhecido na zona sul, mas o waze diz para pegar o rumo da zona oeste. Waze é aplicativo de rotas, conhece os meandros da capital como ninguém. Mesmo assim eu insisto com a passageira: "Vamos pela Marginal Pinheiros sentido Rodovia Castelo Branco?" ela responde afirmativamente com um aceno. Então existe outra Rouxinol em São Paulo? Desço a avenida em direção à Marginal, a mulher recebe uma ligação após a outra, não para. O trânsito para sob e sobre a ponte. No arco da ponte o reflexo do céu avermelhado colore também o rio. Sol posto por detrás dos morros, o tráfego está mais lento que a rotação da Terra. No rádio o volume está tão baixo que mal decifro Avohai: “Neblina turva e brilhante/ Em meu cérebro coágulos de sol/ Amanita matutina/ E que transparente cortina/ Ao meu redor”. Atrás de mim as ligações e conversas protocolares em volume moderado, não param. Faço o contorno da ponte, o caminho está livre, passo ao lado da comunidade com vistas para o rio, o waze manda e eu entro na comunidade. A rua é estreita, no sentido oposto um carro pisca os faróis pedindo passagem. Eu paro. O carro a minha frente para. Não temos como passar, opto por retornar. A mulher atrás de mim segura o telefone no ar, pergunta onde estamos, o waze marca e eu informo: "Estamos a dois minutos para o fim da viagem". Ela faz cara de estranhamento. Atrás de mim outro carro buzina, estou entalado na rua, a passageira altera a voz: "você me trouxe para a favela!" olha para fora através do vidro, parece apavorada. Avisa que vai descer. As silhuetas encostadas no muro se movimentam. "Por favor senhora, não desça!" Ela altera a voz já em desespero: "É um sequestro!" eu percebo que o waze colocou a rota mais imbecil para chegar no passarinho da zona oeste: "Moça, por favor se acalme, eu vou te levar com segurança até seu endereço" ela senta no meio do banco traseiro, agarra a bolsa, puxa as pastas, abraça a sacola e repete que vai descer: "Por favor, não desça. Apenas se acalme." O efeito é contrário: "SOCORRO!". Sim ela grita por socorro dentro do meu carro com os vidros fechados. "Moça, fique calma..." ela avisa como se fosse ameaça: "Estou ligando para meu marido!". O carro atrás de mim buzina, o da frente faz sinais com o farol alto. As sombras encostadas ao muro se foram, a descontrolada da periferia grita ao telefone: "ESTOU SENDO SEQUESTRADA!". Eu deveria ficar irritado. "ESTOU PRESA DENTRO DO UBER NO MEIO DA FAVELA", eu peço calma, ela grita pela milésima nona vez que vai descer, eu peço que não desça pela milésima oitava vez. Tento retomar o controle da situação: "Moça, deixa eu falar com seu marido"... fode... "ELE QUER TOMAR MEU TELEFONE!!" ela se encolhe no banco traseiro, bolsa, pastas e sacola espremidas contra o corpo, expressa terror nos olhos. Eu peço que coloque no viva-voz "EU VOU DESCER!!". O carro a minha frente decide retornar, eu avanço uns metros, o carro atrás de mim ainda buzina. Ouço o marido pedindo print da viagem, por algum milagre Divino, mesmo desesperada ela acionou o viva-voz. "Foi uma rota infeliz do waze" falo alto para o marido ouvir. Ela ecoa para o marido ouvir "EU VOU DESCER!". Tenta abrir a porta e eu peço com calma porém firme: "Moça, por favor, não desce que estamos saindo da favela". A voz masculina pede calma pela vigésima vez, a desesperada grita para o telefone que está sendo raptada e eu ouço a voz masculina gritar de volta: "CALA SUA BOCA E ME ESCUTA!"... Pela primeira vez desde que começou o inferno eu vejo o demônio estático. Os olhos arregalados, a boca arregalada, a mão que segura o celular imóvel. Até os fios de cabelos estão parados no ar. O silêncio absoluto, ouço o Zé Ramalho: “Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei/ E se eu calei foi de tristeza/ Você cala por calar”. A voz mansa do marido corta a música: "Amor da minha vida, se fosse um sequestro esse coitado não estaria pedindo por favor". Demora alguns segundos para ela sair do torpor: "Não?" a voz calma responde do outro lado: "Já viu bandido pedir POR FAVOR?" ele dá ênfase ao POR FAVOR. A mulher olha para mim como se me visse pela primeira vez. Tira uns fios desgrenhados da frente dos olhos, aproveito para confirmar - voz alta para o marido também ouvir: "Não senhora, não é sequestro, não quero que a senhora desça! Fique tranquila que estamos a menos de trezentos metros de sua casa, o waze deu um caminho complicado, só isso". Ela solta a bolsa no banco, solta as pastas, solta a sacola, solta os ombros, solta o pavor dos olhos. Olha em volta, as silhuetas sombrias sumiram ficaram lá atrás, junto com o muro. Já saímos da rua estreita, mas ainda tem cara de comunidade. Ela diz que não reconhece a região. Entro na rua do passarinho, ela diz que não é a rua dela. Peço que confira o endereço no aplicativo. Começo a xingar mentalmente, a desgraça do passarinho deve ser mesmo aquele de Moema. Ela admite que digitou endereço errado ao pedir carro, seu destino não é o passarinho no Jaguaré. Mas também não é em Moema. Tem um terceiro Rouxinol em Osasco, Vila Ayrosa. Mais oito quilômetros, segundo o waze. Por sete quilômetros ela vai se desculpando, eu digo todas as vezes que está tudo bem. Quando entro na rua Rouxinol correta a mulher está calada. Encosto em frente ao seu endereço, finalizo a viagem no aplicativo, ela não abre a porta após o meu cordial "tenha uma boa noite". Viro o corpo para ver o que acontece, ela está ausente, através do vidro fixa os olhos na casa a sua frente: "Moço, meu marido nunca tinha gritado comigo". Não sei o que dizer. Ela se desculpa pela centésima quarta vez e desce. Espero a passageira sumir pelo portão e dou cinco estrelas. Avaliação máxima! Não merece, mas sei lá... Zé Ramalho canta Chão de Giz.

Beto Muniz

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